Só a Antropofagia nos une

antropofagia

Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Tupi or not tupi, that is the question. 

(Trecho inicial do Manifesto antropófago - 1928, Oswald de Andrade)

Essa é uma reprodução bordada e uma das gravuras que ilustram o livro de Hans Staden, prisioneiro alemão dos tupinambás do litoral paulista no século XVI. Seus relatos publicados em 1557 foram os primeiros sobre o canibalismo que era praticado por aqui, foi um dos livros mais vendidos na época e continuou sendo obra de referência sobre as guerras de invasão do Brasil (é gente, 2022 não dá mais pra chamar de descobrimento). Também serviu de inspiração para uma das pinturas mais conhecidas do mundo: o Abaporu (1928) da Tarsila do Amaral. 

Apesar de ser a pintora modernista brasileira mais famosa, Tarsila não participou da semana de arte moderna de 22, estava ainda em Paris mas uniu-se ao grupo logo que desembarcou no Brasil. O Abaporu foi feito como presente para Oswald de Andrade e o inspirou a escrever o seu Manifesto Antropófago (1928) lançando um novo movimento nas artes cujo ideal dialogava com as discussões propostas na semana de 22 de renovar a arte e desvelar a identidade brasileira.

Para os tupinambás de Hans Staden a antropofagia não era para matar a fome, mas um ritual onde ao consumir a carne de seus inimigos estariam vingando os seus mortos de batalha e se nutrindo com a força dos inimigos para dar continuidade à guerra. Alimentando o espírito através da carne de seus guerreiros comidos uns pelos outros num eterno ciclo de renovação que movia as guerras entre diferentes povos.

Para Oswald de Andrade a antropofagia cultural brasileira era algo assim: devorar e consumir o inimigo, o externo, aquilo que se opunha e impunha ao nacional, nutrindo-se de seus elementos para construir um novo nacional, mais forte. 

O movimento antropofágico influenciou muito do que veio a ser produzido na cultura nacional posterior. Podemos observar essa presença por exemplo na música com os tropicalistas, o manguebit e até o tecnobrega. Arrisco dizer que o próprio movimento antropofágico é só um dedo desse caldo humano de resistência e renovação da cultura através do consumo e transformação dos elementos externos naquilo de mais interior que se podia revelar, e que tem raízes muito mais antigas e profundas na cultura brasileira.