Bordadeira Antropofágica

bordadeira antropofagica

Tarsila? Duílio? Comeu, é meu.

Esta é a minha fusão confusão a partir da releitura das obras desses dois artistas. 

As formas características de Tarsila do Amaral são herança de seus estudos na Europa e do contato que teve com as vanguardas, mais especificamente o cubismo.

Quando Tarsila retornou ao Brasil fez uma viagem à MG que a fez se apaixonar pelo interior do Brasil. Sua arte começou a representar temas de uma realidade simples com uma paleta de cores considerada caipira e rejeitada por seus mestres europeus. As imagens e lembranças dessa viagem se fixaram no seu imaginário e acompanharam sua produção por muito tempo.

Duílio Galli, mais ilustre artista de Ibitinga, foi seu aluno e podemos perceber a clara influência no estilo de sua pintura, com o uso de figuras geométricas para a construção das personagens e cenas coloridas com tons fortes e bordas bem delimitadas criando a sensação de relevo redondo e suave. Os temas que Duílio trabalhou em sua arte também se alinham aos temas que Tarsila trabalhou. A simplicidade da vida interiorana e questões sociais observadas quando viviam em São Paulo.

As figuras mais famosas dos dois no entanto são bem opostas: o Abaporu e Antropofagia (que une tanto a figura do Abaporu quanto da Negra) de Tarsila e A Bordadeira Ibitinguense de Duílio. Podemos ver na bordadeira quase um reflexo da figura do Abaporu na Antropofagia, mas sem o jogo de perspectiva que dá a distorção das figuras humanas, e vestido e trabalhando. Enquanto os ideais antropofágicos aparecem nas obras de Tarsila onde as figuras dialogam entre si e com o seu espaço, aparentando estarem a vontade no seu espaço e um tanto melancólicos como que digerindo num pós-almoço, a bordadeira ibitinguense aparece focada no seu trabalho, ignorando o mundo ao seu redor. A bordadeira ibitinguense parece estar reprimida, restrita por suas roupas que parecem justas nos corpos alongados típicos do Duílio.  Ela se curva sobre seu trabalho e não tem tempo para celebração ou observação/absorção do mundo exterior. Seu nome é seu trabalho. Sua necessidade é a produção, girar a roda da economia.

No meu bordado queria produzir um efeito de similaridade de estilo que remetesse diretamente às obras tanto de Duílio, quanto de Tarsila, puxando essa influência estética para construir uma narrativa brincando com as minhas subjetividades. Sou construída a partir das coisas que absorvi do mundo, e construo a partir desse caldo misturado que tenho dentro de mim. Um tanto inspirada pelo movimento antropofágico, outro tanto bem psicológico.

A escolha do ponto cheio para o preenchimento do bordado procura fazer referência ao estilo de pintura dos dois artistas, com formas redondas e efeito de relevo com as bordas bem delimitadas pelo reflexo da luz. As cores além de remeter diretamente às obras de ambos, é uma tentativa de resgate das nossas cores sequestradas por movimentos populistas anti-populares, com o acréscimo do vermelho-terra numa referência à terra do interior paulista e ao sangue que pertence a essa terra. O mesmo tom é usado para o bordado no bastidor que aparece no avesso mostrando ao invés da flor, uma estrela vermelha. Às flores brancas são uma clara referência às estrelas na bandeira nacional, poderia ter feito com 5 pétalas mas resolvi integrar a estampa do tecido verde com 7 pétalas, fazendo também referência à estrela de 7 pontas. Além disso também fazem referência às flores brancas da dama da noite (que talvez não seja dama da noite) que estão em muitas ruas antigas da cidade de ibitinga, inclusive na chácara dos meus avós. A escolha pelo aplique do tecido verde estampado foi para evidenciar o fato de que está obra é um bordado, um artesanato. Utilizei o ponto caseado típico desta técnica com apliques e um retalho de um tecido de valor sentimental.

A bordadeira antropofágica une as duas figuras retratadas na Antropofagia da Tarsila num único corpo, ela é solitária e o diálogo é interno. Diferentemente da bordadeira ibitinguense, a bordadeira antropofágica não se dobra sobre o trabalho, ou sobre o seu corpo. Ela se acomoda a ele e o utiliza como suporte apoiando o bastidor sobre o joelho. Não tem a cabeça abaixada, submissa e unicamente focada no trabalho. Ela olha para fora do bastidor, para o horizonte onde vê possibilidades de vida e inspiração para sua arte. O bastidor, com o bordado mostrado no avesso está voltado para ela, dizendo que seu trabalho não é feito para atender às demandas comerciais ou de encomendas. Para a bordadeira antropofágica o bordado não é só trabalho, é forma de expressão. A identidade bordadeira que antes era resultado da exploração de sua arte como mão de obra, agora é uma identidade artística, artesanal da maneira como ela se coloca no mundo, se expressa. Ela não veste as roupas coladas e justas que sufocam, está nua pois é livre para pensar e agir por si mesma, sem os pudores da sociedade, mas também está exposta mais sensivelmente ao que lhe é externo, absorvendo o mundo com mais facilidade.